segunda-feira, maio 10, 2010

Banalização da Profissão de Jornalismo em Cabo Verde


Em vários artigos nossos publicados em Cabo Verde temos vindo a alertar o Governo e aos cidadãos, pela degradação galopante do nosso “jornalismo”. Colocamos aqui a palavra jornalismo entre aspas, porque em nosso entender não existe o jornalismo cabo-verdiano. O que existe é aquilo que Mário Mesquita chama de “jornalismo militante” comprometido com os poderes político-económicos (2004:55). A par disso e, por outro lado, não podemos falar em jornalismo cabo-verdiano, quando ainda não somos, suficientemente capazes de “pensar pelas nossas próprias cabeças” a problemática do jornalismo no nosso País. Não é que não tenhamos gente capaz de elaborar ideias doutrinárias e, a partir daí, criar uma escola de pensamento jornalístico com lastro cabo-verdiano.

O problema maior prende-se com o comprometimento dos profissionais da comunicação social com o sistema de interesse instalado no seio da classe, tendo como pano de fundo, a cumplicidade do Governo. Por isso, enquanto não atingirmos o patamar de autonomia cognitiva e demarcar da promiscuidade com os poderes, não podemos falar, rigorosamente, em jornalismo cabo-verdiano. Temos sim, o jornalismo de “sarjeta” onde os princípios da ética e da deontologia da profissão são sistematicamente violados em prol dos interesses dos poderes. Em democracia o jornalismo deve sim, desempenhar um papel de watchdog – cão de guarda – “das instituições perante os desvios, as prepotências e os abusos do poder” (Mesquita, 2004:74).

Mas o propósito deste nosso artigo não é este. Contamos retomar esta questão sobre a existência ou não de um “jornalismo cabo-verdiano” numa próxima ocasião e/ou em fórum próprio. Deste modo, lançamos um desafio, desde logo, aos nossos colegas a reflectirem-se sobre esta controversa em ordem a encontrarmos uma designação mais apropriada para aquilo que designamos por “jornalismo cabo-verdiano”.

Serviço Público de Televisão: precisa-se
O objecto desta reflexão tem que ver, justamente, com as Políticas de Comunicação para os media em Cabo Verde, particularmente para o sector de audiovisual. Como é de domínio público a Televisão de Cabo Verde (TCV) ao longo dos seus 23 anos de existência, pouco ou nada tem contribuído para a formação da consciência dos cidadãos tão-pouco para a consolidação da nossa jovem democracia. É só fazer uma pequena observação pelo nível da sua grelha de programação e pelos alinhamentos dos telejornais que, quanto a nós, é uma lástima, do ponto de vista técnico e visa servir unicamente os interesses do Executivo. Basta dizer que a TCV subvencionada pelo erário público tem apenas 5 horas de programação diária em que não se vislumbra, na sua grelha de programas, o verdadeiro sentido de serviço público de televisão. Mas isto tem uma explicação muito simples que, com certeza, os cabo-verdianos já se aperceberam: é que a génese da televisão cabo-verdiana assenta em conhecimentos adquiridos no campo da “universidade da tarimba”.

Ora, o jornalismo televisivo ou não, requer algum grau de abstracção da realidade social. Creio que os tarimbeiros não estarão “formatados” para lidar com realidade tão complexa quanto é a jornalística. Informar, ser informado e informa-se, requer um exercício intelectual para o qual os nossos “confrades” oriundos da escola da tarimba não estão habituados. É preciso uma cultura de valores jornalísticos que, seguramente, não se compaginam com a “universidade da tarimba”. Não obstante, a classe jornalística cabo-verdiana conta hoje, com um número significativo de profissionais com curso superior em Jornalismo, Ciências da Comunicação ou simplesmente Comunicação Social, ainda assim, continuamos a conviver, sobretudo na televisão e na rádio públicas, com um “jornalismo” fortemente influenciado por sequelas tarimbeiras. Curiosamente, são os próprios tarimbeiros gatekeepers, comissários políticos colocados estrategicamente, nestas estações do Estado, que determinam o conteúdo informativo que os cidadãos devem ou não ter acesso. Ou seja, uma espécie de porteiro, que abre e fecha a porta para as notícias que incomodam ou não os poderes.

Jornalistas em um mês e tal
Como se não bastasse o estádio calamitoso por que atravessa o sector audiovisual em Cabo Verde vem, aqui há dias, a ministra, Sara Lopes, que tutela a Comunicação Social, anunciar com pompa e circunstância, a formação de um mês e tal, de alguns jovens com 12º Ano de Escolaridade, em jornalismo televisivo, em ordem a serem os futuros correspondentes da Televisão de Cabo Verde em diferentes localidades do País.
Ora bem, esta decisão do Governo revela, desde logo, um total desconhecimento da importância do jornalismo no processo de formação dos cidadãos e, consequentemente, da sua participação na vida pública do País. Significa ainda, a banalização da profissão de jornalismo, numa altura em que Cabo Verde conta com vários profissionais com formação superior, em diversas universidades europeias, brasileiras e mesmo nacional (Universidade Jean Piaget), que se encontram na prateleira ou no desemprego. Alguns sentiram-se já obrigados a abraçar outras áreas distantes da sua formação para poderem sobreviver. Daí que, em nosso entender, esta opção do Governo é, de todo, errado, sabendo que existem profissionais qualificados sem oportunidade de emprego. É preciso dignificar a profissão de jornalista em Cabo Verde, enquanto, parceira do desenvolvimento do País, sobretudo numa altura em que o arquipélago se prepara para fazer parte das “fileiras” dos Países de Desenvolvimento Médio e à espera, para breve, de uma aproximação à Europa, através da Estatuto Especial junto da União Europeia.
”Não podemos continuar a ver as pessoas formadas no desemprego e o Governo a dar aos jovens um ou dois meses de formação para ocuparem o lugar daqueles que passaram três, quatro ou cinco anos em Universidades, Institutos ou Escolas Profissionalizantes a ‘matarem a vida’ para obterem uma formação”, repudia um profissional licenciado em Ciências da Comunicação, em conversa connosco, que se encontra no mundo dos desempregados da classe.

Por conseguinte, salvo o devido respeito, pelos jovens que concluem, arduamente, o 12º Ano e que precisam de uma formação universitária e/ou técnico-profissional, a fim de poderem garantir o seu futuro, mas não acreditamos, sinceramente, que com apenas um mês e tal de formação, estariam em condições técnico-congnitivas para o exercício do jornalismo.

De acordo com o Jornal Online Liberal a formação ministrada por professores da Universidade de Aveiro vai abordar temas como: noções de jornalismo e notícias; reportagem em televisão; ética e deontologia e relações com as fontes de informação. Estas noções aprendem-se ao longo de um curso em Jornalismo, Ciências da Comunicação ou Comunicação Social. Portanto, é manifestamente falacioso pensar que um (a) jovem que acabasse o ensino secundário conseguiria incorporar em apenas um mês e tal, noções sobre o jornalismo, ainda que básicas, que lhe permitissem exercer com alguma qualidade a profissão. Aliás, é o próprio Estatuto do Jornalista nos seus artigos: 5º; 6º e 7º que impossibilita esses jovens de exercer a profissão.

Senão vejamos: “Podem ser jornalistas profissionais os cidadãos maiores, no pleno gozo dos direitos civis e com formação específica na área de jornalismo oficialmente reconhecida” (nº 1 do Arº 5º do Estatuto do Jornalista). A minha questão é esta: quem vai “reconhecer oficialmente” estes supostos correspondentes da TCV. Será a senhora ministra da tutela? Sim, porque o Ministério da Educação não será, com certeza? O nº 1 do Artº 6º do mesmo documento acrescenta ainda que, “Ninguém pode exercer a profissão de jornalista sem estar habilitada com o respectivo título”. Estará, com um mês e tal de formação, esses jovens capacitados para obterem o título e exercerem, imediatamente a profissão?

“Sem prejuízo do período experimental, os indivíduos que ingressam na profissão de jornalista terão a qualificação que estagiários, por um período de seis meses, se possuírem curso superior que confira licenciatura, ou de dois anos, nos restantes casos.” (Artº 7º do Estatuto do Jornalista). No caso ad-hoc os futuros jornalistas correspondentes, depois de mês e tal de formação ser-lhes-ão distribuídos Kits prontos para fazerem uma cobertura jornalística. Por isso, a nossa dúvida crucial é, qual será o enquadramento que lhes espera?

Como diria um confrade e amigo meu, serão esses “jornalistas” que irão fazer a cobertura mediática dos acontecimentos relativos ao próximo pleito eleitoral que se avizinha nos diversos concelhos do país. É claro que esses jovens não irão, certamente, para além das noções básicas em jornalismo. Portanto, meus senhores não brinquem com coisas tão sérias quanto é a profissão de jornalismo.

Por: Carlos Sá Nogueira*
• Jornalista e mestrando em Ciências da Comunicação – Especialidade em Informação e Jornalismo, na Universidade do Minho.
• E-mail: sanogueiraborges@hotmail.com

Fonte: www.nosmedia.wordpress.com

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